Socialização

A SOCIALIZAÇÃO ESCOLAR EM TEMPOS DE PANDEMIA
A importância de ir à escola vai além dos aprendizados acadêmicos. O convívio com outras crianças é o responsável pelo bom desenvolvimento social.

Conversa com a participação da fonoaudióloga, pedagoga e neuropsicopedagoda, Gleidis Guerra, sobre a importância da socialização infantil durante a alfabetização e ao longo do desenvolvimento da criança.
esde bebês, os indivíduos são instruídos a viver em sociedade, essa prática se inicia no núcleo familiar. Em seguida, a escola é um dos primeiros locais em que a socialização é praticada, ao
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conhecer novos amigos, compreender as pluralidades, exercer a autonomia e independência longe dos pais, além de explorar um novo universo cercado de conhecimento.
Para a fonoaudióloga, pedagoga e neuropsicopedagoga Gleidis Guerra, a escola é o lugar em que a criança vai construir sua identidade a partir dessas diferenças encontradas com outras culturas e hábitos. “A escola é um espelho para a criança. Vai definir a identidade, a autoestima, o desenvolvimento. É onde eles estão com os amigos”, define.
A neuropsicopedagoga atende crianças e jovens em seu consultório na cidade de Mauá e diz que recebe muitas crianças que apresentam distúrbio de aprendizagem, dentre eles os mais frequentes são a hiperatividade e o déficit de atenção.
Clique e confira mais da entrevista com Gleidis Guerra em nosso podcast.
“A escola também é responsável pela transmissão do currículo oculto, ou seja, aquilo não está na matéria: a postura, as atitudes diante de determinadas situações. Onde se aprende o que pode e o que não. Nós aprendemos na escola o tempo todo: regras, costumes, a nos comportar socialmente. Além da importância curricular do aprendizado formal, a escola tem todo esse aprendizado social”, conclui Guerra.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de nº 12.796, de 4/4/2013, em seu artigo 6º aponta que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade.
Ainda que a LDB aponte essa idade como faixa etária obrigatória para efetivação da matrícula, alguns pais preferem inscrever os filhos na escola antecipadamente. Isso ocorre tanto por fatores optativos, com a intenção de que a criança comece a frequentar o ambiente mais cedo, quanto por conta de necessidades, como a ida dos pais ao trabalho.
Para Gleidis, o aumento no número de famílias chefiadas por mães, que atualmente é de 34,4 milhões, com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), faz com que a escola se torne, junto à família, responsável pela educação das crianças.
“Eu acho que a responsabilidade é dos dois e tem que ser compartilhada. Obviamente tem muitos pais que depositam tudo para escola, mas a escola tem a sua parcela de responsabilidade porque a gente tem que pensar que hoje existe uma sociedade de mães que trabalham. Quase 50% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, ou seja, é a mulher que sustenta a casa”, reflete.

Sem a escola fica difícil uma criança encontrar sua própria identidade. A escola é importante em todos os aspectos, social, emocional e psicológico."
Solange Almeida
Por meio da escola, a criança exerce tarefas que estimulam sua socialização e coletividade. Na interação durante a aula, no momento do recreio, na divisão de brinquedos e materiais, entre outros instantes.
É na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que o caráter social da escola é reconhecido. Em seu Art.1º diz que “ A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.”
O ato da participação dos responsáveis pela criança ser essencial na realização das tarefas durante a pandemia é, para a neuropsicopedagoga Gleidis, fator que contribui na percepção dos pais para com as dificuldades que os filhos possuem em seu desenvolvimento escolar.
“Antes os pais transferiam essa responsabilidade para a escola, para a professora, agora conseguem perceber as próprias dificuldades do filho. Além de que, quem tinha um pouquinho de dificuldade aumentou. E quem já tinha uma dificuldade elevada, aumentou mais ainda”, aponta Guerra.
Ensino híbrido, a distância, remoto ou presencial
Com a pandemia, os modelos de aula se diversificaram nas escolas e cidades pelo país. O que era presencial precisou ser interrompido e se tornou remoto. Guerra avalia a importância de identificar essas diferentes modalidades do ensino.
"Cada tipo de ensino tem um nome diferente, não podemos usar o nome de ensino a distância, quando não é. Temos que pensar nessas definições, porque muda o sentido completamente”, diz. Assim, ela classificou as diferentes formas adotadas pelo ensino atualmente como: remoto, Ensino a Distância (EaD) e híbrido.
A neuropsicopedagoga explica que muitas escolas aplicam o termo ‘Ensino Híbrido’ para definir as idas rotativas das crianças à escola, mas na verdade se trata de uma expressão equivocada.
“O ensino híbrido envolve metodologias ativas e envolve o aluno na construção do seu conhecimento”, destaca. “Ou seja, uma atividade em que ela vai fazer uma pesquisa em casa e no dia seguinte debater em aula. Momentos de interação com o professor e momentos em que o aluno tem autonomia para construir seu próprio conhecimento”, completa.
Para ela, essa é uma modalidade que deve ser aplicada após o retorno às aulas presenciais, mas teme que os alunos não tenham maturidade para lidar nesse método.

Por outro lado, o ensino a distância, que permanece ativo mesmo durante a pandemia, é planejado de forma que sua grade de horários, plataforma e materiais de aula são disponibilizados e podem ser acessados de acordo com a rotina de cada aluno.
Dessa maneira, a instituição estabelece um prazo para a execução das atividades propostas, mas o aluno tem liberdade de as realizar no momento que preferir. “O EaD tem uma estrutura para ser a distância, em que a aula é gravada. Ela tem uma plataforma específica, em que todo material fica disponível em vídeo-aulas. O curso é estruturado assim”, informa Guerra.
Por fim, ela exemplifica o ensino remoto como o ensino presencial transferido para o ao vivo. "Quem era presencial e ficou em casa por conta da pandemia, na verdade, tornou a sala de aula em computador. Isso é ensino remoto”, define.
Guerra acredita que a absorção do conteúdo transmitido pode variar de acordo com a metodologia usada pelo professor e pela escola durante o ensino remoto. ”A aula presencial, apenas passada para o remoto, não vai funcionar. 4 horas, 5 horas em uma aula expositiva também não vai funcionar, a criança não vai aprender, acredito que vai haver um déficit, um prejuízo no aprendizado. Isso levando em consideração escolas que dão aula online”, explica.
Já para escolas que apenas utilizam atividades enviadas, sem a utilização de recursos online e ao vivo, ela vê como prejuízo para as faixas etárias entre 1° e 3° anos. “As escolas que só mandam atividades para casa, terão um prejuízo muito maior, porque a criança não tem como lidar com as atividades sozinhas. Crianças não têm autonomia e nem sempre é possível que a família esteja presente para acompanhar todo o processo. Eu acredito que haverão crianças retornando para o presencial bem defasadas na questão da aprendizagem”, considera.
A neuropsicopedagoga diz acreditar que o ensino remoto seja usado em apenas alguns casos, mas que não será o método prevalente, pós-pandemia. Os alunos, então, devem retornar ao presencial e aqueles que escolherem ao EaD, uma vez que não houve alterações nesse modo de ensino. E conclui ao dizer que “o que temos hoje não é EaD e nem ensino híbrido. Isto é: vai um dia, outro dia não vai.”
A evolução cognitiva e o uso de aparelhos tecnológicos
A professora particular e neuropsicopedagoga Solange Almeida, que atende em Brasília, vê a escola como de vital importância para o desenvolvimento da criança nas relações que ela virá a construir no futuro. “Sem a escola fica difícil uma criança encontrar até a sua própria identidade”, pontua. “É difícil que ela cresça como um adulto que vai saber se posicionar. Saber lidar com frustrações, com conflitos e com problemas. A escola é importante em todos os aspectos, social, emocional e psicológico.”
Contudo, nem sempre os pais participam efetivamente da vida escolar de seu filho e depositam na escola a responsabilidade da educação e aprendizado da criança sem ao menos questionar e contribuir nessa relação.
“Creio que isso tem a ver com o nível de analfabetismo no país, com a cultura, com o acesso ao conhecimento. A pandemia veio confrontar isso, até no ato de respeitar os professores e perceber que não é fácil ensinar os filhos”, diz Almeida.
Com a chegada da pandemia de Covid-19 e a interrupção das aulas presenciais, as famílias precisaram adaptar-se ao novo modelo de aulas. Ainda que as aulas remotas não fossem usadas previamente na educação básica, essa foi a alternativa apontada por muitas instituições para que não houvesse interrupção do ano letivo em 2020 e em 2021.
Dessa forma, as crianças passam mais tempo em frente às telas, sejam de celulares ou computadores, já que essas ferramentas se tornaram os principais meios para envio das atividades.
Em dezembro de 2019, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) já havia postado um Manual de Orientação chamado ‘#Menos Telas #Mais Saúde’, Nele são indicados o limite do tempo de telas ao máximo de uma hora por dia, sempre com supervisão, para crianças com idades entre dois e cinco anos. E de até duas horas por dia para crianças com idades entre 6 e 10 anos, também com supervisão.

Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019.
O Manual da SBP ainda aponta como problemas médicos e alertas de saúde “as experiências, tanto positivas e construtivas, como as negativas ou traumáticas, que ocorrem a primeira infância, idade escolar e adolescência, como a aprendizagem da agressividade e intolerância manifesta nos jogos e redes, que permanecem como modelo referencial, se não forem melhor reguladas e diagnosticadas, terão impacto duradouro nos comportamentos e nos estilos de vida, incluindo as questões de saúde, até a vida adulta”.
A professora particular destaca que o computador é uma ferramenta de ajuda na aula presencial, por meio de vídeos e música, mas a nível de alfabetização a criança não tem autonomia suficiente para fazer o uso.
Ela ainda diz que ”é muito visual e fonológico, mas não ajuda as crianças que precisam praticar. Crianças que não tem coordenação motora não conseguem treinar pelo celular, como no presencial, em que utilizamos papel físico e o lápis. É difícil para o professor perceber as dificuldades da criança a distância.”
Solange diz ter permanecido dando aulas presenciais, o que acarretou perda de alunos, mas a adesão de outros. “Estou trabalhando mais horas por dia, aumentei as vagas com menos tempo por aula e com protocolo rígido de higiene. Até agora tem dado certo. Desde o início da pandemia eu não parei. Precisei me reinventar, também aderi às aulas online”, explica.
As crianças com idade de 6, 7 e 8 anos tem sido o maior público durante a pandemia à procura das aulas particulares de Solange e ela explica que é complicado alfabetizar remotamente. “Principalmente aquelas que não sabem absolutamente nada, ainda mais se não houver o envolvimento dos pais. Tem sido bem complicado, um desafio grande para atender a demanda”, conta.
“A criança precisa de alguém do lado dela, de um condutor. Ela não tem autonomia para ler e interpretar. As aulas por meio do computador podem prejudicar mais quem já tem déficit de atenção, ou seja, aquela criança que tem dificuldade de concentração”, diz Almeida.

O que temos hoje não é EaD e nem ensino híbrido. Isto é: vai um dia, outro dia não vai."
Gleidis Guerra
A contribuição familiar a distância
Segundo pesquisa realizada no site NOVA ESCOLA em que foram coletadas 9.557 respostas, sendo 8.121 (85,7%) delas de professores que se identificaram como educadores de Educação Infantil, Fundamental e Médio foi apontado que tanto na Educação Infantil quanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em que geralmente a participação dos responsáveis é mais efetiva, apenas 3% dos professores afirmam que todos os responsáveis têm participado. Outros 43% dos educadores dos anos iniciais relatam que poucas famílias têm participado.
Para Almeida, “as aulas online são completamente ineficientes”, destaca. “O Brasil não é preparado para esse tipo de educação, justamente porque os pais terceirizam a educação dos filhos. Se os pais têm condições de contratar um profissional e a criança tem hábito de pesquisa, ele é eficiente. Caso contrário, não”.
A professora ainda aponta que a maioria das famílias pensa que a escola é totalmente responsável pela educação e parte dos pais não dão a devida importância para o que está acontecendo, o que deve gerar problemas para a criança, futuro adolescente e a sociedade em si.
Almeida diz que ao não frequentar a escola, a criança perde em seus relacionamentos sociais, em fazer novas amizades e em desenvolver resiliência. “Em casa a criança fica superprotegida e acaba não desenvolvendo os aspectos sociais. Ela perde em se conhecer como criança, em como reagir a determinadas situações. Ela perde vivências que geram ensinamentos importantes”.
Ela completa ao dizer que crianças que não são corretamente alfabetizadas terão dificuldades de aprendizado ao decorrer do tempo. “Quando a família se envolve, o sucesso é maior. Antes de trabalhar com a criança eu trabalho com os pais. Eu não pego um aluno sem antes falar com os pais. Eu direciono os pais e as crianças”, revela. “Pais que não se envolvem acabam não proporcionando todo o potencial que as crianças poderiam alcançar”.